Braz Boa Ventura, 54 anos - foi talvez a conversa mais estranha que tive até hoje com um estranho. Braz vive debaixo de um viaduto junto ao Estádio do Benfica, já por diversas vezes eu tinha reparado no amontoar de coisas ali por baixo mas nunca lá tinha visto ninguém. Hoje decidi passar por lá e lá estava o Braz. Quando me aproximei cumprimentei-o ao longe e ele também me cumprimentou e fui ter com ele. É cabo-verdiano e não trabalha. Vive ali por ordem de um espírito "fui carpinteiro trinta e dois anos e vivo aqui porque o espírito i manda!" Nesse momento perguntei-lhe quem era o espírito i. "sou eu, ele manda em mim mas agora somos o mesmo! Ele manda eu viver aqui, sou Francês, ele é Francês mas não vou morrer aqui em Portugal, ele não quer e vou morrer em Cabo Verde!" Perguntei-lhe do que precisava "nada, vivo aqui com a minha família, pai e mãe já morreram mas vivem aqui comigo, estão agora aqui, são espíritos também, tu não vês mas eles estão aqui ao nosso lado" Perguntei-lhe o que comia "ando ao lixo, como batatas, e feijão e há um senhor que me dá dinheiro que dá para vinho". Á sua volta havia muitos cobertores, casacos, botas e peças de roupa amontoada, uma mini banheira com água turva e uns utensílios de cozinha, entre eles uma grande faca, numa bancada improvisada e dois ou três colchões. Apesar de ter tecto por estar debaixo do viaduto não tem paredes. Perguntei-lhe se não tinha frio "tenho mas embrulho-me nos cobertores e durmo bem e o espírito i não tem frio. Mas também vou partir, espírito i mandar eu ir embora e vou partir de barco para Cabo-Verde daqui a três meses e não voltar mais aqui" No final da conversa foi buscar um bloco de notas com milhares de frases escritas por si a lápis. Não percebi o que significavam apenas que no final de cada conjunto de frases estava sempre escrita a palavra Obrigado "são frases do espírito i da minha vida, todos os dias escrevo, coisas muitas coisas mas só nós, eu e o espírito i percebemos" O dia estava cinzento mas por mais estranho que possa parecer sempre que falava no espírito i o sol apareceu.

Lisboa, 25 de janeiro de 2016
Miguel A. Lopes